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Entre trovas e trovões, a história de um cristão.

"Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna." João 3:16

domingo, 27 de junho de 2010

TROVA #02: PEQUENO DELEITE

Num breve e gelado “bom dia”, quase que sussurrado, o rapaz entra errante pela pequena porta metálica cinza da empresa, com as mãos nos bolsos, olhando para o chão e tentando encontrar alguma lógica no encaixar dos azulejos da parede.

Tentando não pisar nas linhas entre um piso e outro, seu olhar rude e fulminante para a recepcionista avisara que ele não respeitaria a ordem da diretora de entrar pelo portão superior. A máquina de ponto era próxima à recepção e nada, nem ninguém, faria o rapaz rodear a empresa por conta de um registro bobo de horários. Passaria por onde fosse mais cômodo e a distância entre a masmorra e a forca fosse menor. Os breves apitos de confirmação do registro – e do atraso – seguiram-se dos passos pela escada e pelo bater da porta de sua sala – “marketing”. Eterna chancela de alguém apaixonado pela profissão, mas impedido de amar.

Outrora, João exercera plenamente sua função, não de marqueteiro, mas de sonhador. Acreditara que o rótulo igualmente cravado na porta de sua saleta poderia fazer dele um profissional equiparável a Kotler, Drucker ou outro reles mortal, com uma meia dúzia de livros publicados e uma legião de fãs espalhados por todo o mundo.

Embora carregasse uma invariável paixão pelo trabalho, envolvia-se num turbilhão de pensamentos confusos, inconsistentes, que mesmo começando e terminando vazios, divertiam seu ego. A esta altura, ser taxado como “marqueteiro” ou “sonhador” pouco importava. É claro! O jovem rapaz acabara de se descobrir um gênio: não há marketing sem sonho. E não há sonho que não seja marketing.

A descoberta valera o dia. E o atraso.

TROVA #02: PEQUENO DELEITE

Quão miserável és tu, ó João!
Dono de nada, sem nada para ti.
Deleita-te, rapaz, em teu vazio,
e revira teu oco até te exaurir.

Do nada vieste, para o nada tornarás.
Deleite-te tu em tua mediocridade,
e com as coisas medianas te saciarás.

Contenta com o pouco, ó infante!
Almeja o aquilo que é morno, pobre alma,
e perpetuamente claudicarás, errante.

Quão miserável és tu, ó João!

sábado, 26 de junho de 2010

TROVA #01: STATUS QUO

O som naquela manhã de terça-feira era desagradável, a visão ligeiramente turva e na boca, um sabor de algo que não foi muito bem digerido. Apesar do incômodo, nada era novidade na vida do pobre rapaz, a não ser o dia em que a ressaca deu o ar de sua graça – uma terça como outra qualquer. Estranhamente, após os primeiros goles, João pôde ter certeza de que se dava ao desfrute comum de uma noite sabática habitual. Não fossem os preciosos minutos de atraso para o trabalho no dia seguinte – que provocaram um telefonema exasperado do patrão, talvez ainda pretendesse seguir para a missa do domingo.

O uniforme verde com detalhes azuis era quase do mesmo tom de sua pele, os cabelos desgrenhados eram facilmente ajeitados com uma das mãos enquanto a outra escovava os dentes. No bolso um pequeno tocador de mp3 e os fones cravados no ouvido, tocando alguma música da boa e eterna aprendiza de herege.

Ainda com a boca molhada e os olhos pesados, tapados por um RayBan contrabandeado, o rapaz sai a passos largos para o trabalho, enquanto ouve uma canção vulgar e o som dos carros ao seu lado. Seu próximo destino, às margens do rio da cidade, será o responsável por algumas horas a mais de mau humor e quem sabe, de algum relacionamento rápido após o expediente para aliviar a tensão. Não importa com quem.

TROVA #01: STATUS QUO

Reles e insignificante mortal,
Poeirinha da poeira, sem valor!
Sem preceito, sem moral,
Sem estirpe, trivial.

Ó, vida que me é inútil!
Porque me tomas todos os dias?
Não sabes tu que não sou teu,
Mas que tu, ó vida, tu és minha?

Quisera eu, ingrato espelho,
Olhar para ti e ver um deus.
Mas meu lamento, ó fútil vidro,
É ver a mim, essência: eu.

Ó, vida que me é inútil!
A tua hora há de vir.
Ou me matas tu, ó vida,
Ou me vingarei de ti.