Os pequenos minutos que se seguiram entre a formidável descoberta e o primeiro e mais cruel toque do telefone foram poucos, cinco ou seis. Embora rápido, o telefonema foi pungente o bastante para dissipar a nuvem de sonhos e trazer o jovem rapaz de volta à realidade. Ora, se não há marketing sem sonho e se todo sonho é marketing, não havia razões suficientes para justificar o círculo vicioso que se formara ou os grilhões que poderiam surgir de tal silogismo.
O telefonema, prosaico como todos os outros que vinham da diretoria, viera carregado de ordens e instruções, acompanhamento de metas e evolução geral do departamento – nada de que João ainda não soubesse, ou fingisse que sabia.
Sua nova conclusão – igualmente brilhante como a anterior – lhe dissera agora que se o destino realmente existisse, o seu não se limitaria uma carteira assinada, uma renda mensal mediana e um casal de gárgulas corporativos assombrando seu cotidiano, celebrando o ritual do vodu imaginário.
No fundo, João não se importava muito com isso, nem com a possível falta de espaço para cravar outros alfinetes no Joãozinho de pano. Antes, ria sozinho da harmonia entre o prosaísmo de sua rotina e os versos da velha música: “...e a esposa anda malhada / fez lipoescultura / e a falta de cultura nunca foi problema / ela tem dinheiro para dar e vender...*”
E lamentava-se ironicamente por não ter sido ele o compositor.
TROVA #03: DICOTOMIA
Quebra-te encanto
e torna-te a formar.
Seja o logo o teu inverso,
e instaura a incerteza.
Oblitera todo o sonho,
esmoreça teu fervor,
seja tudo como é,
sem chama, sem calor.
Restaura-te encanto,
para então de novo quebrar.
Seja logo o teu reverso,
de novo traga a incerteza.
Renova toda a ânsia,
a utopia sem pudor,
seja tudo assim como é,
vício, fogo, amor.
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*Música de Jay Vaquer - "Cotidiano de um casal feliz", carregada de criticismo e contemporaneidade. Veja em http://bit.ly/A49YD