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Entre trovas e trovões, a história de um cristão.

"Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna." João 3:16

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Fartos pelo almoço, novamente éramos alguns gerentes posicionados estrategicamente em torno de uma mesa. Alguns agrilhoados contra suas próprias vontades aos braços do diretor, ao passo em que outros dariam tudo – ou quase tudo para ocuparem os mesmos lugares. Entre uma cabeceira e outra, cadeiras reclinadas que faziam dos testas-de-ferro um refúgio contra os olhares incandescentes – de fúria ou de paixão – da diretora. Qualquer um suficientemente viril teria se apaixonado por um daqueles olhares.

Qualquer um, menos um.


TROVA #05: CINCO, DEZESSETE*

Ei-lo, o homem que não é daqui.
O homem que outrora gargalhou,
por algum outro motivo hoje sorri.

Ei-lo, o homem abnegado de vaidade.
O homem que em sua fraqueza se gloriou,
e em paz hoje cursa o Caminho e a Verdade.

Ei-lo, o homem que em fé e amor existe.
O homem que com os olhos para o alto,
acredita que há Alguém que por nós vive.

Ei-lo, o homem, que por assim ser, é falho.
O homem que apesar de todos os seus erros,
para caminhar com ele, novas vidas amealha.

Ei-lo, o motivo de ele não ser daqui.
O homem que outrora pela carne gargalhou,
Pelo espírito de Alguém Maior, hoje sorri.

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*Alusivo ao texto de 2 Coríntios 5:17

domingo, 1 de agosto de 2010

A reunião daquela terça-feira parecia ainda mais monótona que o usual, embora o novo perfume da diretora, com um cheiro lancinante de jujubas recém-fabricadas trouxesse a náusea coletiva como complemento. Para qualquer um dos lados que João olhasse, sua visão não lhe revelava nada além do que já conhecia, nada além do bom e velho marasmo acinzentado que recobria aquele lugar. As bochechas enrubescidas da madame, ocultas sob uma densa camada de pó-de-arroz, deixavam transparecer que algo naquele lugar não fluía muito bem.

Reuniões gerenciais eram sempre precedidas de uma insuportável ritualidade, quase canonicamente metódicas. Naquela manhã, algo quebrara os protocolos e nenhum preâmbulo habitual fora observado. Como que numa miraculosa transfiguração do fictício para o real, a primeira fala do corpo diretor foi “Seremos breves”. O que seria tratado logo em seguida, de fato, não faria muita importância – pois como o próprio diretor o dissera, o que é breve, é supérfluo.

Embora sempre discordasse do adágio, João prosseguia atento à pauta, tentando formar um novo teorema que conseguisse atribuir relevância às coisas efêmeras. Ora, não fazia o menor sentido dizer que o que é breve não é importante, se um orgasmo dura em média 20 segundos e dele pode surgir uma nova vida.

Seu sorrisinho de mofa denunciara o pensamento libidinoso, interrompido bruscamente pelo fechar das agendas e uma convocação para a reunião vespertina. Em total coerência com o pensamento do diretor, o encontro breve fora realmente supérfluo.


TROVA #04: DECIDUIDADE


Vida, tão breve quanto o seu nome,
desencanta-me pelo teu correr.
Pois se somente o perene, algo vale,
nada de ti há de florescer.

Vida, ampulheta da existência,
expulsa-me de teu arrastar.
Pois se em fogo efêmero nada arde,
em mediocridade hás de galgar.

Ó, dilema que me é cruel!
Ou vivo eu demais, e algo valho,
ou vivo aquém do tempo, e morro falho.

domingo, 25 de julho de 2010

TROVA #03: DICOTOMIA

Os pequenos minutos que se seguiram entre a formidável descoberta e o primeiro e mais cruel toque do telefone foram poucos, cinco ou seis. Embora rápido, o telefonema foi pungente o bastante para dissipar a nuvem de sonhos e trazer o jovem rapaz de volta à realidade. Ora, se não há marketing sem sonho e se todo sonho é marketing, não havia razões suficientes para justificar o círculo vicioso que se formara ou os grilhões que poderiam surgir de tal silogismo.

O telefonema, prosaico como todos os outros que vinham da diretoria, viera carregado de ordens e instruções, acompanhamento de metas e evolução geral do departamento – nada de que João ainda não soubesse, ou fingisse que sabia.

Sua nova conclusão – igualmente brilhante como a anterior – lhe dissera agora que se o destino realmente existisse, o seu não se limitaria uma carteira assinada, uma renda mensal mediana e um casal de gárgulas corporativos assombrando seu cotidiano, celebrando o ritual do vodu imaginário.

No fundo, João não se importava muito com isso, nem com a possível falta de espaço para cravar outros alfinetes no Joãozinho de pano. Antes, ria sozinho da harmonia entre o prosaísmo de sua rotina e os versos da velha música: “...e a esposa anda malhada / fez lipoescultura / e a falta de cultura nunca foi problema / ela tem dinheiro para dar e vender...*”

E lamentava-se ironicamente por não ter sido ele o compositor.

TROVA #03: DICOTOMIA

Quebra-te encanto
e torna-te a formar.
Seja o logo o teu inverso,
e instaura a incerteza.
Oblitera todo o sonho,
esmoreça teu fervor,
seja tudo como é,
sem chama, sem calor.

Restaura-te encanto,
para então de novo quebrar.
Seja logo o teu reverso,
de novo traga a incerteza.
Renova toda a ânsia,
a utopia sem pudor,
seja tudo assim como é,
vício, fogo, amor.

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*Música de Jay Vaquer - "Cotidiano de um casal feliz", carregada de criticismo e contemporaneidade. Veja em http://bit.ly/A49YD

domingo, 27 de junho de 2010

TROVA #02: PEQUENO DELEITE

Num breve e gelado “bom dia”, quase que sussurrado, o rapaz entra errante pela pequena porta metálica cinza da empresa, com as mãos nos bolsos, olhando para o chão e tentando encontrar alguma lógica no encaixar dos azulejos da parede.

Tentando não pisar nas linhas entre um piso e outro, seu olhar rude e fulminante para a recepcionista avisara que ele não respeitaria a ordem da diretora de entrar pelo portão superior. A máquina de ponto era próxima à recepção e nada, nem ninguém, faria o rapaz rodear a empresa por conta de um registro bobo de horários. Passaria por onde fosse mais cômodo e a distância entre a masmorra e a forca fosse menor. Os breves apitos de confirmação do registro – e do atraso – seguiram-se dos passos pela escada e pelo bater da porta de sua sala – “marketing”. Eterna chancela de alguém apaixonado pela profissão, mas impedido de amar.

Outrora, João exercera plenamente sua função, não de marqueteiro, mas de sonhador. Acreditara que o rótulo igualmente cravado na porta de sua saleta poderia fazer dele um profissional equiparável a Kotler, Drucker ou outro reles mortal, com uma meia dúzia de livros publicados e uma legião de fãs espalhados por todo o mundo.

Embora carregasse uma invariável paixão pelo trabalho, envolvia-se num turbilhão de pensamentos confusos, inconsistentes, que mesmo começando e terminando vazios, divertiam seu ego. A esta altura, ser taxado como “marqueteiro” ou “sonhador” pouco importava. É claro! O jovem rapaz acabara de se descobrir um gênio: não há marketing sem sonho. E não há sonho que não seja marketing.

A descoberta valera o dia. E o atraso.

TROVA #02: PEQUENO DELEITE

Quão miserável és tu, ó João!
Dono de nada, sem nada para ti.
Deleita-te, rapaz, em teu vazio,
e revira teu oco até te exaurir.

Do nada vieste, para o nada tornarás.
Deleite-te tu em tua mediocridade,
e com as coisas medianas te saciarás.

Contenta com o pouco, ó infante!
Almeja o aquilo que é morno, pobre alma,
e perpetuamente claudicarás, errante.

Quão miserável és tu, ó João!

sábado, 26 de junho de 2010

TROVA #01: STATUS QUO

O som naquela manhã de terça-feira era desagradável, a visão ligeiramente turva e na boca, um sabor de algo que não foi muito bem digerido. Apesar do incômodo, nada era novidade na vida do pobre rapaz, a não ser o dia em que a ressaca deu o ar de sua graça – uma terça como outra qualquer. Estranhamente, após os primeiros goles, João pôde ter certeza de que se dava ao desfrute comum de uma noite sabática habitual. Não fossem os preciosos minutos de atraso para o trabalho no dia seguinte – que provocaram um telefonema exasperado do patrão, talvez ainda pretendesse seguir para a missa do domingo.

O uniforme verde com detalhes azuis era quase do mesmo tom de sua pele, os cabelos desgrenhados eram facilmente ajeitados com uma das mãos enquanto a outra escovava os dentes. No bolso um pequeno tocador de mp3 e os fones cravados no ouvido, tocando alguma música da boa e eterna aprendiza de herege.

Ainda com a boca molhada e os olhos pesados, tapados por um RayBan contrabandeado, o rapaz sai a passos largos para o trabalho, enquanto ouve uma canção vulgar e o som dos carros ao seu lado. Seu próximo destino, às margens do rio da cidade, será o responsável por algumas horas a mais de mau humor e quem sabe, de algum relacionamento rápido após o expediente para aliviar a tensão. Não importa com quem.

TROVA #01: STATUS QUO

Reles e insignificante mortal,
Poeirinha da poeira, sem valor!
Sem preceito, sem moral,
Sem estirpe, trivial.

Ó, vida que me é inútil!
Porque me tomas todos os dias?
Não sabes tu que não sou teu,
Mas que tu, ó vida, tu és minha?

Quisera eu, ingrato espelho,
Olhar para ti e ver um deus.
Mas meu lamento, ó fútil vidro,
É ver a mim, essência: eu.

Ó, vida que me é inútil!
A tua hora há de vir.
Ou me matas tu, ó vida,
Ou me vingarei de ti.